HACKEAMENTOS FEMINISTAS DE THATIANA CARDOSO

Exposição individual realizada na Temporada de Projetos do Paço das artes 2023

São Paulo, 2023

Fotografia: Marie Kappel

Os algoritmos te trouxeram até mim. Agora, o satélite me leva até você é o título da primeira exposição individual da artista Thatiana Cardoso (São Bernardo do Campo, SP, 1984), exibida como parte da Temporada de Projetos 2023 do Paço das Artes. Os trabalhos apresentados partem da seguinte premissa: um hackeamento feminista de golpistas do amor. Sim, você leu direito: golpistas do amor. Uma breve busca revela, em notícias, matérias de jornais e documentários, a recorrência de homens enganando mulheres para roubar-lhes dinheiro; tais histórias também se tornam inspiração para ficções em novelas e séries.

 A artista contou-me que a ideia de produzir trabalhos que tratassem do tema golpes de amor surgiu após receber mais de dezessete tentativas de golpe pelo Instagram. Diante da primeira tentativa, em 2021, ela teve despertada uma forte curiosidade pessoal, ainda não imaginada como obra de arte. Assim, passou a falar com o primeiro golpista, fingindo interesse em suas juras de amor. Foi, então, que uma palavra específica escolhida por ele aguçou ainda mais a curiosidade de Cardoso: o homem, um suposto soldado do exército estadunidense, chamou-a de “damsel”, “donzela” na tradução do inglês para o português. Realizando uma busca reversa no Google, a artista descobriu nos sites da Interpol e da CIA que as fotos usadas pelo “cavalheiro” haviam sido roubadas e eram usadas para golpes do amor. No mesmo momento, ela escreveu para as mulheres que o homem seguia, alertando-as se tratar de um golpista (CARDOSO, 2023a).

Mãos às obras! Thatiana Cardoso passou a dedicar boa parte de seu tempo a conversar com diversos desses “cavalheiros”, performando estar apaixonada. Ao longo dos anos, a artista elaborou as experiências em diferentes trabalhos – performances, pinturas, fotografias, vídeos – dos quais muitos podem ser vistos em Os algoritmos te trouxeram até mim. Agora, o satélite me leva até você.

Vale notar que o título da exposição é aquele dado a uma obra composta por imagens e textos. Depois de semanas conversando com um de seus golpistas e preparando o terreno, a artista, por fim, dá sua cartada final, enviando-lhe um link que permite – após clicado – rastrear sua localização. Ela conseguiu enganá-lo, revertendo o golpe. Região de Madri, Espanha, é de onde parece atuar aquele “cavalheiro”. Usando recursos dos mapas do Google, a artista captura prints da paisagem das redondezas, nas quais insere frases geradas por Inteligência Artificial.

Cria-se uma historinha de amor, com começo, meio e fim. “Sinto-me grata por termos encontrado um ao outro neste mundo tão vasto”; “conectados de uma forma que transcende a distância e o tempo”, “a distância entre nós parece instransponível”. Os tempos da narrativa de amor, que ao fim é frustrada pela distância, são acompanhados pelas imagens de uma estrada deserta em diferentes momentos do dia. A luz que passa do claro ao escuro nas fotografias é material simbólico para o despertar e morrer da paixão que nunca existiu. As frases compõem cartas de próprio punho da artista, cuja origem são textos de IA, como dito. Os clichês amorosos refeitos na caligrafia pessoal expressam a complexidade da elaboração da poética de Thatiana Cardoso.

 Realidade e ficção são duas das fronteiras principais exploradas pela artista em Os algoritmos te trouxeram até mim. Agora, o satélite me leva até você. Enquanto escrevo estas linhas, não deixo de pensar, inspirada pelas palavras do escritor Mohamed Mbougar Sarr (2023), sobre as formas de impostura e suas seduções, que envolvem a produção de arte no capitalismo e suas raízes coloniais, racistas, misóginas.

Nas conversas que tivemos, Cardoso explicou-me: “acho que todos estamos, de certa forma, presos nessa rede do capitalismo. Hoje há inúmeros cursos e mentores de prosperidade, pessoas explicando como você faz para atrair uma vida abundante, e esses perfis têm milhares de seguidores” (CARDOSO, 2023c). Engano e sedução na era coaching potencializam venerações pastorais e idealizações salvacionistas. Dito de outro modo, há uma incitação para que cada indivíduo deseje tudo aquilo que os aprisiona.

 Muitas vezes o amor em suas modulações na tradição burguesa é formador de tais imaginários, nos quais a performance feminina identifica-se a partir da figura de mãe-esposa-dona-de-casa, em constantes metamorfoses. O desejo de amar e ser amada aos moldes do capitalismo – introjetado em cada uma de nós –, opera- -se/é operador de formas de enganar a si própria.

 O autoengano oferece-se como camada instigante da exposição de Thatiana Cardoso. Por exemplo, para a realização do vídeo O amor morre mais de indigestão do que de fome (2023), conversou durante três semanas com um dos golpistas: “Era um ‘namoro on-line fake’, ambos estávamos tentando enganar um ao outro”, diz a artista. “A vantagem que eu tinha”, continua, “é que eu sabia”. Nem por isso a experiência tornou-se mais simples, sendo o autoengano um importante recurso para mantê-la na farsa: “quando conversávamos, eu precisava esquecer que tudo era uma ‘armação’. Se eu ficasse lembrando o tempo todo que aquela pessoa era um golpista, eu acabava travando, e foi por isso que, nesse processo, o autoengano foi necessário. Ele me ajudava a criar aquele ‘personagem’, que tinha um pouco de mim, mas era outra” (CARDOSO, 2023c).

A outra de si – personagem apaixonada – abandona a língua materna e adota o inglês para comunicar-se. “Hi, there”, “Can you hear me?” são as primeiras palavras escutadas na obra inédita O amor morre mais de indigestão do que de fome. Na tela, sob um fundo cor-de-rosa com corações, veem-se as trocas de mensagem entre a artista e seu pretendente-golpista, Martin, cuja identificação nas redes sociais é Christabel, nome de sua alegada filha. O vídeo segue, o rapaz responde, e a conversa continua. Os dois dizem juras de amor em tom meloso. Os risinhos apaixonados, a fala doce são algo particularmente difícil, relata a artista (CARDOSO, 2023b). Será?

Lembro que o engano é tema de grande interesse da artista, sobre o qual ela escreve no artigo “Objeto corporificado: o engano como estratégia poética” (2020). Ali, ela trata de trabalhos mais antigos – não exibidos no Paço das Artes, como Preparação e Corpo em silêncio (ambos de 2018). Neles, a artista fotografa objetos domésticos em rosa-choque, sendo torturados. As imagens estabelecem conversações subversivas com trabalhos feministas como Semiotics of the Kitchen (Semióticas da cozinha, 1975), de Martha Rosler, outros apresentados na mostra Womenhouse (1972), organizada por Judy Chicago e Miriam Schapiro, e mesmo a emblemática série Femme-maison (Mulher-casa, 1945-1947), de Louise Bourgeois.

Se aquelas artistas traziam a violência da conformação dos corpos femininos a partir de objetos/objetificações do lar e do trabalho doméstico não reconhecido, nem remunerado, Cardoso se revolta contra a situação, tornando-se ela própria a torturadora simbólica dos objetos que oprimem as mulheres. Hábito, é preciso frisar, que traz da infância, quando brincava de torturar suas bonecas pendurando-as no varal para que tomassem chuva ou matando-as todas em uma guerra imaginada.

Seriam essas as primeiras de muitas revoltas contra o sistema cristão-burguês-capitalista-patriarcal operadas pela artista? O feminismo da Thatiana Cardoso, penso, aproxima-se daquele definido pela socialista Angela Davis. A autora, ao falar sobre as metodologias feministas, diz: “Elas nos impelem a habitar contradições e descobrir o que há de produtivo nelas e nos métodos de pensamento e ação. Elas nos incitam a pensar em conjunto coisas que parecem estar inteiramente separadas e a desagregar coisas que parecem pertencer naturalmente umas às outras” (DAVIS, 2022, p. 236).

Sendo assim, para aqueles que esperam encontrar em Os algoritmos te trouxeram até mim. Agora, o satélite me leva até você. um tom dicotômico no qual “as mulheres são boas” e os “os homens são maus”, ou promessas de um mundo encantado e maravilhoso no qual o Feminismo venceu, Thatiana Cardoso confirma sua impostura. Recusa-se a encaixar-se em identidades prêt-à-porter, a criar panfletos publicitários ou a ilustrar bandeiras predefinidas. Cria uma poética subversiva, bem como foi em sua vida a atitude de tornar-se artista, história sedutora para um próximo texto.

 Ácida, irônica, escapando aos falsos moralismos, Thatiana Cardoso torna públicas suas pessoalidades reais e fictícias. Encara a si não como a boa mãe-esposa-dona-de-casa como querem os vários tipos de golpistas que encontramos pela vida. Tampouco personifica um desejo mercadológico da nova e boa mulher contemporânea aos moldes do feminismo neoliberal. A primeira individual de Thatiana Cardoso é efeito de experimentações sinceras no território artístico e de um enfrentamento corajoso em movimentos de reelaboração de si.

                                                                                                                    Gabriela De Laurentiis